Sexta-feira: Pulei da cama às 04:30 horas. Poderia ter ficado mais, porque a Mari estava de folga por ser funcionária pública municipal. Enrola daqui faz cera de lá. Vou de carro ou parto a pé? Enfim, 06:00 estava eu na Avenida Edgar Facó cujo canteiro central se encontra bem arborizado com uma trilhazinha de chão batido. Excelente. E as arvorezinhas meio que amenizam o monóxido de carbono. Também há a companhia de corredores, caminhantes e cachorreiros. Gosto de todos eles. Admiro os caminhantes. Adoro cachorros. E sou fã inverterado de corredores, quaisquer deles.

Creio que o vai deva ter uns 700 metros e o vem, idem. Estava eu no segundo vai-e-vem quando sinto uma vontade de tentar abrir a passada, ritmando-a para aprender a correr e deixar os trotes para quando estiver pilando calçadas, esperando faróis abrirem, subindo e descendo sargetas e pegando as lombas, tal como o treino de quinta (aliás, delicioso).

Isso era o que desejava naquela planura, chão macio como um chão deve ser para as articulações dadas as proporções do concreto: Inimigo número zero do corredor.

Mas meu desejo foi contido por uma voz abafada, que parecia tentar sair de um rocambole de banha. Estranho aquilo, de onde vinha? Era eu mesmo. Mas lá dentro. Do coração, já menos atolado em banha do que antes.

Quando ele percebeu que eu o ouvia tratou, de dizer rispidamente:

– O que você está tentando fazer? Acelerar? Correr? É sensato? Você nem ao menos se alimentou para isso. Vem treinando todos os dias em Jejum. Essa dor que anda lhe afligindo nas costas, acha que é do quê? Massa magra se dissipando juntamente com o suor. Não era isso que você estava fazendo consientemente? Pois então. Aceite este estágio. Não acelere, aliás, diminua já porque tenho mais coisas para lhe falar.

De repente eu diminui mesmo. Não sei o quanto. Mas sentia que o movimento era contínuo. Era trote. Leve, mas trote. Não sentia esforço algum, nem aquela sensação besta de que o treino não está valendo de nada por falta daquela pitadinha de esforço necessário para ser o minimamente desafiador. Não sentia o trote. Sentia o corpo simplesmente indo. Muito ao contrário do que acontecia minutos antes, quando eu queria dar um pau na máquina, com sofrimento, apenas para não perder a oportunidade do local. Achei até estranha aquela introspecção que me acometia, justo ali no meio de um trânsito parado. Pessoas já estressadas. Pontos de ônibus lotados. Era o último lugar que eu imaginava fosse acontecer isso, considerando os lugares e horários de plena paz que costumo treinar. Mas aconteceu. Não via nem ouvia nada. Abaixei a cabeça sendo levando pelo movimento automático. Meu coração então dizia:

– Cláudio, já parou para perceber realmente se o seu primeiro objetivo de retorno às corridas já não foi alcançado. Convido-o para lembrar de como se sentia ontem a noite. Não estava exausto? Exaurido ao ponto de não ter disposição para ler sequer um bilhete da sua amada? Cansaço intenso? Muito bem. Mas será que não este não era um pouco diferente do cansaço intenso que sentia três meses atrás. No cansaço de ontem você desejava a cama. Baixinha de quadril largo e acohedora. Desejável e acessível. No cansaço de antes, você desejava era um milagre diante do desespero de saber que a cama era o último lugar que você poderia se sentir bem. Onde você se afogava. Isso quando não era surpreendido com um refluxo que mais parecia um golfada, que de tão amarga, azedava-lhe a própria vontade de viver até o almoço do dia seguinte. A solução então era se sentar no sofá para acordar 40 minutos depois com a pança embebida em saliva morta (baba) e a nuca doendo. Arriscava ir até o quarto mas desitia no meio caminho, retornado ao sofá para mais uma sessão de 40 minutos com baba no barrigão e torcicólo no nucão.

– Você se lembra disso? Pois é a hora de agradecer a dádiva. Seu esforço já fez com que você voltasse a dormir na horizontal. Na cama. Ao lado da mulher que tanto ama. Sono que se ainda não está perfeito ao menos repara-lhe do cansaço mil vezes mais do que antes.

Eu ouvi tudo aquilo. Foi dito pausadamente. Enquanto ouvia, sentia que passava um vai-e-vem, seguido de mais um, depois outro. Tudo com o corpo se movendo sozinho para que eu pudesse ouvir e sentir tudo que eu precisava.

De fato. Uma transformação já ocorreu. Posso agora dizer que voltei para o aconchego de uma cama, a minha cama, onde também dorme a mulher mais linda do mundo. Outrora, é claro, me envergonhava em dizer pra quem quer que fosse, o que realmente estava acontecendo e como estava acontecendo.

Eu estou ficando poucas horas na cama, mas elas me estão sendo infinitamente mais proveitosas. A forma que tenho de retribuir é levantando às 04:30, mesmo com audiências, prazos, clientes, pós graduação, trânsito, mau humor geral e a mediocridade. Não quero mais a mediocridade na qual eu estava vivendo. Quero gozar. Gostar, amar, viver e principalmente aprender para compartilhar com a pessoa mais importante na minha vida que é o Henrique.

A fala de mim para mim mesmo foi um alerta de que eu estava começando a deixar de usar o exercício físico como um acarinhamento. Por que querer acelerar se o combinado era que eu me acarinhasse doce e levemente. Calma. Tudo terá a sua hora. Num dado momento o corpo pedirá mais intensidade, quando então a dieta será de aporte. A maratona não vai embora. Ela está lá no cume me esperando, sem pressa. Talvez ela custe muitas tentativas frustadas, já que requisita que eu esteja dominando a minha ansiedade.

Fui tomado por uma paz. Um alívio e um alento. Mais do que isso, uma certeza de que estou aprendendo. A certeza de que não sou mais um adolescente. A certeza de que a maturidade me trará obstinação e perseverança por mais cíclico que possa parecer a corrida pelo “sucesso”.

O dia de hoje foi especial. Senti-me radiante. Senti-me bonito com o terno recem chegado da lavanderia após ter ficado três anos num canto mofado do guarda roupa. Eu sorri muito hoje. Sorri para todo mundo. Deixei as amarras em casa, junto com a gravata. Junto com o cinto (de castidade? Será?) Despojado, jovial e sedutor. Seduzi meus amigos do trem. Conquistei expressões exclamativas. Que gostoso ouvir um como vc está bem. Visivelmente feliz. Alegre e, lógico, palhaço.

De noite, após ter ido a esbórnia com pizza. Eis que a minha amada me presenteia com um shorts de corredor. Da adidas, azul, lindo, mas tão pequenino. Será que me serve? Não é que serviu. Olhe, combina com os tênis novos, ainda não estreiados. A camiseta branca deu o arremate. Faltava alguma coisa… CORRER. Pois fui “correndo” cumprimentar o natalício de um amigo que ainda estava no trabalho, a um quilômetro daqui. Voltei de lá por uma lomba de responsa e os últimos tres quarteirões foi de um inédito sprint, assim considerada uma corridinha não lenta, mas longe de ser rápida. Cá estou eu, 01:22, feliz da vida a contar a epopéia do dia de hoje.

Se chegou até aqui. Agradeço a paciência.