“Tonico e carniça”, isso lá é nome que se dê a um livro? Ter que ler um livro desses? “Tonico”…? Isso lá é nome de menino? Isso é nome de velho, é nome de avô, avô daqueles bem brabo, avô carrancudo, forte, vaidoso e cheiroso, sempre alinhado, “escamoso“… Mas um menino da minha idade, na época, como poderia se chamar assim? E ainda mais tendo como bicho de estimação um urubu!!?? Ah…, eu li. Não me lembro de mais nada, não lembro se carniça era mesmo bicho de estimação, mas que importa isso agora? Por que me vem “Tonico e carniça” se o que importa apenas é o “Seu Tonico”?
– Ôh’racema, traz meu chinelo! Grita ele hoje.
Nos velhos tempos, meus tempos novos, ela era obrigada a usar todo seu pulmão e toda a sua garganta de soprano pra entoar um grito fino anunciando que era hora de almoçar:
– Toniiiiiiiiiiiiiiico!!!!!
É isso mesmo. Prendia o “i” de infinito lá no fundo da garganta. Os netos brincam imitando…, mas só as meninas, hoje mulheres, sabem fazer como ela. Os meninos acentuam “o”: Tonicoooooooooo”. Não é assim. É “Toniiiiiiiiiiiiiico”.
E lá vinha ele da roça, da mangueira, do chiqueiro dos porcos, de onde quer que estivesse, meio resmungão, cabisbaixo, bochechas caídas, mas altivo, orgulhoso. Era hora do almoço anunciado pela “‘racema”. Êta mineiro brabo!
Hoje sentado na sua cadeira, porque a dor “na escadeira” e os joelhos fracos vergam o galho que parecia indomável, fita o mundo. As dores vergam-lhe as pernas, jamais os olhos, esses mesmo que a cabeça baixe sempre verão o seu mundo de cima; se esses quedarem é porque o fim inevitável chegou. Pensa que isso é exagero de escritor? Não é não. “Seu Tonico Dundes”, seu nome é orgulho! O velho é “medonho”, como diria Toninho, o rebento macho mais novo, que é filho até no nome.
Da varanda, com seus chilenos moldados aos seus pés pelo tempo, observa tudo que sua vista cansada consegue espreitar, nada passa sem que perceba; seus ouvidos atentam para ao canto da seriema, que voltou pro seu lugar, vê o gado no pasto, o bezerro novo, a vaca de cria, o carneiro, o gato manso que dorme abraçado com o cachorro fiel, o carro que vem na estrada, o estranho que se aproxima, o menino, a menina, a mulher, tudo não lhe escapa… Fala pouco, mas a sua sabedoria de velho não se cala. Sua voz pigarrenta fala com a propriedade de doutor, não ouse duvidar, ele sabe!
Sabe se vai chover, sabe procurar o veio d’água pro poço, curtir couro, sabe quando a vaca vai criar, se o namorado da neta vai prestar, sabe preparar a semente, a muda, plantar e colher, limpar, torrar não! O café quem sabe torrar mesmo é a ‘racema (o café que a ‘racema gosta de distribuir de xícara em xícara pras visitas)
Suas mãos fortes com unhas que mais parecem cascos, que ele sempre cortou precisamente com o canivete afiado, lidam ainda com que alcançam. Escolhem meticulosamente o feijão, debulham milho pra canjica, depois de escolherem a melhor espiga, descascam o milho verde pro cural, tratam dos bichos que lhe fazem companhia – ai de mim se ele lesse o que escrevo, teria me corrigido “umas duzentas vezes”…
Para os meus olhos de menina, que deveriam hoje ser de mulher, ele sempre foi velho, sempre teve aquela cabeça coberta com fios branquinhos, branquinhos, não há um só fio negro; ele sempre foi forte, sempre severo com tudo e com todos, nunca tocou ou fez um afago, mas como eu poderia esquecer do meu primeiro chinelo? Foi ele quem trouxe… Aquele que eu tive que teimar pra que meus dedos segurassem. Como esquecer das balas que pareciam chicletes? Ele não sabia, mas eu gostava daquelas por isso, porque pareciam chicletes; ele não os comprava, dizia que se os mascasse as orelhas cresceriam, e eu acreditava… Mas como não? Ele conseguia fingir que mastigava algo e mexia aquelas orelhas enormes, mostrando que com aquele movimento elas aumentariam.
Contava histórias de assombração à noite pra nós seus netos, mas sempre as desmascarando, desvendando os mal-entendidos que lhes davam origem, mesmo assim ouvíamos boquiabertos, mudos, absortos por suas histórias, não era sempre, e por isso mesmo quando o fazia era especial. Qual dos netos não se lembra de como ele servia de “represa” pra poça d’água da cachoeira? Ele se deitava na passagem estreita do córrego para represar a água pra gente brincar. Quem não se lembra com ternura do seu riso contagiante quando acha graça até da desgraça?
Claro que ele era severo, quase não se podia fazer nada naquele sítio, mas isso pouco importava, dávamos um jeito de nos divertirmos, éramos obedientes. E o que importa isso hoje? “As coisas ficam muito boas quando a gente esquece”… dos fatos miúdos, a nossa memória seletiva e sábia guarda o que é de fato importante:Tonico, o avô.
Mas por que me lembrei daquele livro?
Talvez porque me remeto à infância ao me lembrar do meu avô, talvez porque esse livro, que não gostei, marque uma época na qual descobria o gosto pelas histórias, não sei a resposta correta, mas essa hipótese me satisfaz por hora. O gosto por ouvir, ler, e agora escrever memórias, talvez tenha se delineado aí… E falar, escrever, a respeito do “vô Tonico”, que não seria nada sem a “racema”, me traz a menina de volta, a menina que nunca se foi, mas que mudou… Talvez porque escrever sobre Tonico seja apenas falar de mim…
Por Ana – Crônica selecionada e publicada no livro “Prudente 90” – 2007.
Comentários recentes