Foi sem dúvida meu segundo amor platônico; o primeiro, como há muito explica Freud , foi um tio, figura na qual eu projetava o Elvis dos tempos áureos, ele mesmo, o que não morreu. Mas o Clau, foi o primeiro amor romântico que me inventei, um amor que não causava sofrimento, porque bastava apenas senti-lo, não me interessava sabê-lo correspondido, não eram necessários carinhos, toques, bilhetes ou olhares, bastava-me partilhar com ele a felicidade de brincar; é certo que esforçava-me por ocultá-lo com todas as minhas energias nos xingamentos e desaforos que destinava ao objeto do amor de mulher ainda menina. Foi tão especial, esse amor, que o dividi sem egoísmo com uma prima, éramos cúmplices no amor infante, porque nos amávamos também, amava o amor que ela tinha pelo alvo do meu amor romântico; ao cantarolar de poemas de Djavan, compartilhávamos secretamente, dos ouvidos e olhos adultos, o platonismo. Ao crescer esquecemos num canto da memória a generosidade ingênua dessa capacidade infantil de partilhar sem ciúmes.
Esse era o sentimento que dava as nuances do meu carinho contraditório de prima para com o Clau, mas pra além desses devaneios infantis, ele foi meu companheiro de brincança, na minha infância isolada no sítio, era ele quem trazia a alegria em quase todos os finais de semanas. Malino que só ele o sabia ser, não perdia uma oportunidade de me desaforar e mangar da minha braveza: gargalhava ao imitar minha “fungada” de reprovação quando ele me irritava. Divertia-se quando eu me corroia com suas ironias: a miúda “Dada”, chorava quase sempre com suas brincadeiras.
“Êta Cademir, danado!!!” Não é a primeira vez que ele nos assusta: um dia levou no peito uma cerca de arame farpado reluzente de tão esticado e novo!, num outro enroscou a bochecha no varal, quando em cima de um cavalo! Ah…botava em risco não só a sua como nossa segurança…
Quase nunca andávamos a cavalo, o vô sempre poupava seus cavalos de lida das nossas mudas traquinagens, mas lembro bem e a Lú também, do dia em que o “Cambil”, rasgou a areia fofa da estrada com sua bicicleta urbana de pneus finos (a famosa Caloi 10, dos anos 80), golpeando com um galho de Santa Bárbara, os traseiros lustrosos de égua Guariba e da Campolina – que de muar pouco ou quase nada tinha, de tão esperta-, que nos levava pro raro passeio; elas já o conheciam bem e por isso danaram a galopar com as duas polentas azedas chorosas e protestantes no lombo. O arreio de um dos animais virou e, não tenho certeza, mas acho que a Lú foi pro chão sob os risos de nosso amado capetinha, cujo prazer era atormentar a irmã. Eu me agarrei ao cabresto até que o eqüino parasse.
Não é pretensão minha esgotar as aventuras de Clau, teria eu que dispender tempo e criatividade pra narrar suas inúmeras “artes”, mas não posso deixar de lado também o meu perfil malino e vingativo, e desprezar uma das poucas vezes, talvez a única, em que o fiz chorar…
…numa daquelas tardes morosas do sítio, naquelas em que o sol fervente faz o pasto tremer, brincávamos absortos eu e o Clau sob os majestosos pés de manga ubá, que sombreavam o terreiro da casa da vó, aquelas árvores que nos fazia laborar na limpeza do mar de folhas que soltavam. Pareciam se vingar da nossa barulheira infernal, promovendo a tarefa maçante de rastelar o terreiro, e depois carregar os montes de folhas com a carriola pesada de ferro.
Naquela tarde, cavamos a terra fria com colheres, latas e peneiras que a vó nos cedeu depois de alguma relutância, fizemos pocinhos – tínhamos a pretensão de cavar um tão fundo, que pudesse chegar ao Japão, mas creio que se pudessem engolir nossos braços por completo, já nos daríamos por satisfeitos- e bolinhos de terra de todos os tamanhos. Sentados na terra, se não fosse a altura e a cor dos cabelos, seríamos indefirençáveis.
Como não poderia deixar de sê-lo, aquela brincadeira de construir, só terminaria mesmo em destruição: quando cansados de engenhar pocinhos secos, deslocamos as energias na confecção de inocentes bolinhos que aos poucos foram se transfigurando em bolas de canhões, em mísseis e torpedos, e assim foram usados ao fim do brinquedo. Cada um do seu lado da arena, margeando a varanda da velha casa de madeira da vó, tendo como expectadores as mangueiras altivas, travamos a batalha…
Não é preciso dizer que, apesar de mais novo que eu quase dois anos, ele sempre me viu de cima, sua altura aliada a sua agilidade, me colocaram em desvantagem, levei bolinho de terra no corpo, com direito a fragmentos na cara, até que as lágrimas enlameassem minha face furiosa. Chorava de raiva, os bolinhos não eram suficientemente duros para machucar ou fazer doer, mas somados às gargalhadas do Clau sujavam meu rosto e meu orgulho…
Num acesso de fúria, mirei um bolinho no meu inimigo, que de tanto rir negligenciou minha pontaria, envaidecido com suas conquistas, deixou-se sob minha mira, oculto sob uma peneira gigante daquelas de abanar café, pois não tive dúvidas, arremessei com todas as minhas parcas forças, o torpedo úmido de terra!
Feito uma bomba o bolinho explodiu na cara do famigerado, recobrindo sua face com inúmeras pintinhas de terra molhada, parecendo que sofrera um abrupto ataque de catapora! Ao vê-lo abatido, vi sua alegria de vitorioso, esvair-se em lágrimas…
Malvadamente, minha lágrimas passaram da dor à alegria gargalhante por vê-lo humilhado por um único e inocente bolinho de terra… Aí a brincadeira transformou-se em briga e choro… Apartados sem demora pela vó, fui expulsa pra minha casa, e o Clau pro banheiro, sob a ameaça de que não deveríamos mais brincar juntos naquele dia.
Como sempre, passada a raiva, logo estaríamos juntos pra mais uma brincadeira. Não nos desgrudávamos enquanto ele estivesse no sítio.
Não preciso dizer, pra quem o conhece, que esta criatura, é uma das pessoas de coração mais mole e solidário que conheço, alegra as nossas festas, é carinhoso e respeitoso com todos, por isso tão amado e estimado.
Estamos te esperando para a sua festa meu querido!
(Ju, minha linda, não fique com ciúmes das minhas memórias de menina, amo você tanto quanto amo meu primo! Não o vejo sem você, menina-leoa.)
Tal ou Alex, deixo-lhes a tarefa de remeter as palavras dundescas ao vocabulário, e se puderem expliquem os apelidos…Beijinho
Comentários recentes